1 – Sobre o Tráfico de Drogas e o tráfico privilegiado – Lei 11.343/06:
O tráfico de drogas possui uma modalidade chamada de “tráfico privilegiado” e hoje abordaremos esse instituto que causa bastante controvérsia no mundo jurídico.
De início, devemos destacar que o tráfico de drogas é uma conduta típica amparada na Lei 11.343/06, mais especificamente em seu artigo 33.
O tráfico privilegiado, por sua vez está disposto no § 4 º, do art. 33 da Lei 11.343/06.
Quanto ao tráfico de drogas, este é um tipo penal que traz em seu cerne uma série de verbos nucleares, ou melhor, condutas (ações) que se praticadas serão consideradas “tráfico de drogas” para todos os efeitos legais.
Vejamos a redação do art. 33 da Lei de drogas:
“Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.”
Há muita controvérsia acerca do delito de tráfico de drogas e porte para consumo, conforme já abordamos em nosso post sobre a confissão no crime de tráfico de drogas.
Porém, aqui abordaremos a ocorrência da figura do tráfico privilegiado e todas as suas nuances.
2 – Requisitos para concessão do tráfico privilegiado e previsão legal – § 4º, do art. 33 da Lei de Drogas:
Pois bem, o denominado tráfico privilegiado está amparado no § 4º, do art. 33 da Lei 11.343/06, e possui o seguinte texto legal:
“Art. 33.
[…]
§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. (Vide Resolução nº 5, de 2012)”
Basta uma leitura rápida do texto legal transcrito acima para que se perceba que se refere a uma causa de redução de pena e, sendo reconhecida, diminuirá a pena em 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços).
Sendo causa de diminuição de pena, esta será aplicada na terceira fase da dosimetria da pena (veja nosso post sobre dosimetria da pena aqui).
Para reconhecimento da benesse do tráfico privilegiado, existem alguns requisitos, que são cumulativos, que devem estar presentes. São eles:
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Agente primário
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Possuir bons antecedentes
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Não devotar-se a atividades criminosas ou organização criminosa
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É importante destacar que embora o § 4º, do art. 33 da Lei de Drogas (Lei 11.343/06) fale que é proibida a “conversão em penas restritivas de direitos”, o entendimento majoritário é que a tal vedação é inconstitucional, conforme Supremo Tribunal Federal – STF1. O Superior Tribunal de Justiça – STJ, segue o mesmo entendimento2.
Portanto, quando o agente for primário, possuir bons antecedentes e também não possuir sua vida voltada a criminalidade, ser-lhe-á concedida a benesse do tráfico privilegiado, com a consequente redução da pena em 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), sendo possível, desde que presentes os demais requisitos prescritos em lei, a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos.
3 – O delito de tráfico de drogas é hediondo, conforme Lei de Crimes Hediondos:
Conforme já visto em nosso post sobre os crimes hediondos, o tipo penal definido como “tráfico de ilícitos” é tido como crime hediondo, conforme previsão expressa do inciso XLIII, do art. 5º da Constituição Federal de 1988 – CF/88, assim como com fulcro no art. 2º, da Lei 8.072/90 (lei de crimes hediondos). Vejamos:
“art. 5º [..]
XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;”
Sendo este crime hediondo, uma das consequências será uma maior rigidez para que ocorre a chamada progressão de regime, assim como a concessão de outras benesses.
Nas condutas praticadas antes do pacote anticrime, a progressão será de 2/5 (dois quintos) de cumprimento efetivo, se primário, e de 3/5 (três quintos), caso seja reincidente.
É necessário ficar atento a data do fato para saber o quantum necessário para progressão.
Veja nosso post sobre progressão de regime após o pacote anticrime
Após o pacote anticrime, os prazos para progressão de pena foram alterados sobremaneira e nos delitos do tipo hediondos ou mesmo equiparados, a pena mínima a ser cumprida será de 40% (quarenta por cento), caso primário e de 60% (sessenta por cento), se reincidente, conforme se extrai da novissíma redação do art. 112, da Lei de Execução Penal (LEP).
4 – Mas o tráfico privilegiado é crime hediondo? Entendimento do STF acerca do tráfico privilegiado
Por muitos anos o tráfico de drogas, em sua modalidade privilegiada ou não, foi tido como crime hediondo, inclusive o STJ editou a súmula 512 para orientar que o mero reconhecimento da modalidade privilegiada não afastava a natureza da hediondez do delito.
Porém isso mudou. Atualmente, a percepção do STF é de que o tráfico em sua modalidade privilegiada NÃO CONSTITUI CRIME HEDIONDO OU EQUIPARADO. Vejamos:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL, PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. APLICAÇÃO DA LEI N. 8.072/90 AO TRÁFICO DE ENTORPECENTES PRIVILEGIADO: INVIABILIDADE. HEDIONDEZ NÃO CARACTERIZADA. ORDEM CONCEDIDA.
1. O tráfico de entorpecentes privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei n. 11.313/2006) não se harmoniza com a hediondez do tráfico de entorpecentes definido no caput e § 1º do art. 33 da Lei de Tóxicos.
2. O tratamento penal dirigido ao delito cometido sob o manto do privilégio apresenta contornos mais benignos, menos gravosos, notadamente porque são relevados o envolvimento ocasional do agente com o delito, a não reincidência, a ausência de maus antecedentes e a inexistência de vínculo com organização criminosa.
3. Há evidente constrangimento ilegal ao se estipular ao tráfico de entorpecentes privilegiado os rigores da Lei n. 8.072/90. 4. Ordem concedida.
(HC 118533, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 23/06/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-199 DIVULG 16-09-2016 PUBLIC 19-09-2016)”
Conforme decisão destacada acima, o STF passou a depreender que o tráfico privilegiado não tem a mesma gravidade do tráfico de drogas e que não foi a intenção do legislador equipará-los, mas sim dar tratamento diverso.
Desse modo, o STF passou a entender que o tráfico de drogas, quando praticado na forma privilegiada, não pode ser apontado como crime hediondo ou mesmo equiparado, conforme veiculado em seu informativo de nº 831.
Seguindo o mesmo raciocínio, o STJ cancelou a súmula 512 (já debatida acima). Vejamos:
“O tráfico ilícito de drogas na sua forma privilegiada (art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006) não é crime equiparado a hediondo e, por conseguinte, deve ser cancelado o Enunciado 512 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça.” (STJ. Pet 11.796-DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 23/11/2016, DJe 29/11/2016).
Desse modo, a modalidade privilegiada do tráfico de entorpecentes, conforme STF e STJ, não é crime hediondo ou mesmo equiparado a hediondo, o que impacta sobremaneira no quantum necessário para progressão da pena ou mesmo livramento condicional.
5 – Pena do tráfico de drogas e do tráfico privilegiado
A pena no delito de tráfico partirá de 05 (cinco) anos e poderá chegar a 15 (quinze) anos (sem considerar a eventualidade de incidência de alguma causa de aumento de pena).
No tráfico privilegiado, após a fixação da pena-base e da pena intermediária, será aplicada a diminuição da pena, entre o mínimo de 1/6 (um sexto) e o máximo de 2/3 (dois terços).
Exemplo: pena intermediaria fixada em 06 (seis anos) e reconhecido tráfico privilegiado em 2/3 (dois terços) a pena ficará em 02 (dois) anos.
6 – Regime de cumprimento de pena em hipótese de condenação de tráfico em sua modalidade privilegiada:
Há muito já foi superada a tese de obrigatoriedade de imposição de regime “inicialmente fechado”, pois o STF a considerou tal obrigatoriedade inconstitucional3.
Portando, é possível o regime inicialmente fechado em crimes hediondos, PORÉM, este somente será aplicado à luz da situação concreta e se as circunstâncias forem desfavoráveis, sendo imprescindível a devida fundamentação para tanto.
6.1 – Mas e no tráfico em sua modalidade privilegiada, é possível o regime fechado apenas em razão deste?
Pelo que já foi exposto acima, é de depreender que não. A mera ocorrência de tráfico, aliado a circunstâncias favoráveis, não atrai o regime inicialmente fechado.
No caso do tráfico em sua modalidade privilegiada, o STF entendeu que o reconhecimento deste é incompatível com a imposição de regime fechado ou mesmo semiaberto em desconformidade com o quantum da pena fixada. Vejamos:
“[..] Concluiu não se poder chancelar a fixação automática em relação ao regime semiaberto pelo simples fato de ser tráfico privilegiado […]”. (STF. HC 163231, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 25/06/2019, PROCESSO ELETRÔNICO Dje-185 DIVULG 23-08-2019 PUBLIC 26-08-2019). Informativo 945, do STF.
Portanto, quando for reconhecido a benesse do tráfico privilegiado, a colocação em regime mais gravoso do que o quantum da pena recomenda, será ilegal.
Veja mais posts em:
Lei 14.126/2021: visão monocular como deficiência
Modelo: pedido de suspensão do processo – art. 313 CPC
Súmula 567 do STJ: câmera de vigilância e furto impossível
Súmula 444 do STJ: ações em curso agravam a pena?
Deputados e Senadores podem ser presos?
Fontes:
1. STF. ARE 663261 RG, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 13/12/2012, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-025 DIVULG 05-02-2013 PUBLIC 06-02-2013.
2. STJ. AgRg no REsp 1.359.941-DF, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 4/2/2014. Informativo 536.
3. STF. HC 111840, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 27/06/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-249 DIVULG 16-12-2013 PUBLIC 17-12-2013. Informativo 672.
Informativos STF: 945, 831 e 672
Súmulas STJ: 512 (cancelada)