Apreensão de ínfima quantidade de munição é crime? Lei 10.826/03

1 – Afinal, a apreensão de ínfima quantidade de munição é crime?

Apreensão de pequena quantidade de munição é crime

Antes da discussão se a apreensão de ínfima quantidade de munição configura ou não crime, é necessário tecer alguns comentários sobre a legislação que cuida do tema.

Nós possuímos uma legislação específica para tratar acerca do comércio, registro e afins, de armas de fogo, munições e acessórios.

Trata-se da Lei 10.826/03, bastante conhecida como “Estatuto do Desarmamento”. A citada legislação traz como típica (como criminosa) as práticas de:

I – posse irregular de arma de fogo, munição ou acessório de uso permitido – art. 12 da Lei 10.826/03;

II – porte ilegal de arma, munição ou acessório de uso permitido – art. 14 da Lei 10.826/03;

III – porte/posse ilegal de arma de fogo, munição ou acessório de uso restrito – art. 16 da Lei 10.826/03.

Conforme se percebe, não existe um tipo penal dedicado “apenas” para a criminalização do “porte/posse” de munição.

Na verdade, no Estatuto do Desarmamento, temos as 03 (três) figuras típicas destacadas acima, cada uma com sua peculiaridade.

Portanto, aqui trataremos brevemente sobre os tipos penais destacados acima, natureza do delito e, ao final, debater se a apreensão de ínfima quantidade de munição configura crime (ou não).

2 – Natureza dos delitos previstos nos arts. 12, 14 e 16 da Lei 10.826/03:

De início, devemos destacar que os crimes definidos nos arts. 12, 14 e 16 do Estatuto do desarmamento são de perigo abstrato, conforme se extrai de diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça – STJ, é o que se verifica nesta nota1, nesta2 e nesta outra3.

A conduta típica, embora formalmente prevista em lei, deve ser relevante, isto é, deve gerar consequências aptas a abalar o bem ou bens eventualmente tutelados pela norma penal.

Ocorre, que alguns delitos são definidos como de natureza de “perigo abstrato”, sendo este o caso dos tipos penais destacados acima.

Portanto, quando se tratando de delito de perigo abstrato, é o mesmo que dizer que aquela conduta, se praticada, atrai a presunção legal de ofensividade relevante ao bem jurídico.

Assim, o posse/porte ilegal (ou irregular) de munição atrairá uma das figuras típicas já mencionadas acima, pois possuem presunção de que são de perigo abstrato, conforme já reconhecido em jurisprudência. Vejamos:

posse irregular de arma de fogo

“[…]Este Superior Tribunal é firme em assinalar que a posse ilegal de munição de uso permitido, desacompanhada da respectiva arma de fogo, configura o crime do art. 12 da Lei n. 10.826/2003. Trata-se de delito de perigo abstrato que presume a ocorrência de risco à segurança pública e prescinde de resultado naturalístico à incolumidade física de outrem para ficar caracterizado.[…].”(STJ. AgRg no HC 619.750/RS, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Rel. p/ Acórdão Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 22/09/2021, DJe 01/10/2021).

No mais, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF também é nesse sentido. Vejamos:

“EMENTA Agravo regimental em habeas corpus. Penal. Posse ilegal de munição de uso restrito. Artigo 16 da Lei nº 10.826/03. Crime de perigo abstrato. Precedentes. Invocação dos princípios da insignificância e da atipicidade da conduta. Improcedência. Regimental não provido.

1. O porte ilegal de arma e munição é crime de perigo abstrato, cuja consumação independente de demonstração da potencialidade lesiva da arma ou da munição.

2. Agravo regimental ao qual se nega provimento.

(STF. HC 148801 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 07/08/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-185 DIVULG 04-09-2018 PUBLIC 05-09-2018)”.

Assim sendo, pouco importa a consequência ou resultado, a lesividade é a regra quando se trata dos tipos penais definidos nos arts. 12, 14 e 16 da Lei 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento).

Contudo, definir em qual dos tipos penais determinada conduta se enquadra é deveras relevante, seja em função da quantidade de pena máxima e mínima ou mesmo pela natureza delitiva, uma vez que a figura do art. 16 da Lei 10.826/03 foi reformada e passou a ser crime hediondo, após alterações promovidas pela Lei 13.964/2019.

Por essa razão, é necessário fazer a diferenciação destas. De início, devemos destacar que é indispensável a compreensão acerca da natureza da arma, munição ou acessório, se de USO PERMITIDO ou de USO RESTRITO.

Existe regulamentação específica no sentido de definir quais armas, calibres, munições e acessórios são de uso permitido e de uso restrito.

Obs.: Lembrando que a apreensão de arma e munições em um mesmo contexto configura crime único. Exemplo: apreensão de arma de uso permitida municiada.

Obs.: a apreensão de arma de uso permitido municiada e munições de uso restrito, são condutas diferentes, logo, será hipótese de incidência, em tese, dos crimes do art. 12 (ou art. 14, conforme o caso) e 16 da Lei 10.826/03.

 

2.1 – Posse irregular de munição de uso permitido – art. 12 da Lei 10.826/03

O delito de posse irregular de arma, munição ou acessório de USO PERMITIDO encontra guarida no art. 12 da Lei 10.826/03, com a seguinte redação:

art. 12 da Lei 10.826/03 - crime de posse de arma, munição ou acessório de uso permitido

“Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa:

Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.”

O art. 12 da Lei 10.826/03 possui em sua redação elementos bem específicos para fins de configuração do delito de “posse” de arma, munição ou acessório, tais como:

  • Possuir ou manter sob sua guarda”;

  • em desacordo com determinação legal ou regulamentar”;

  • no interior de sua residência ou dependência desta”;

  • local de trabalho, desde que seja o titular ou responsável legal do estabelecimento ou empresa”;

Denota-se, que nesta ocorrência a posse é algo mais estreito, pois se subsume ao mantenimento da guarda ou posse de arma na residência ou local de trabalho do agente (nas hipóteses definidas acima), diferindo do porte, que é mais amplo.

Saliente-se que estamos falando de arma, munição ou acessório de uso permitido.

Não obstante, quem possui porte/posse deve, no prazo definido pela autoridade competente, renovar o registro. Há precedentes do STJ que o mero registro vencido não configura ilícito penal (STJ. HC 587.834/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 18/08/2020, DJe 24/08/2020).

2.2 – Porte ilegal de munição de uso permitido – art. 14 da Lei 10.826/03

Ato contínuo, temos a figura típica do art. 14 da Lei 10.826/03, que trata do crime de PORTE de arma, munição ou acessório de USO PERMITIDO. Vejamos:

art. 14 da Lei 10.826/03 - crime de porte de arma, munição ou acessório de uso permitido

“Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável, salvo quando a arma de fogo estiver registrada em nome do agente. (Vide Adin 3.112-1)”

Vê-se, indubitavelmente, que estamos ante uma ação delitiva essencialmente mais ampla, que abrange mais condutadas e com uma diversidade de verbos nucleares.

Exemplo: portar arma de fogo de uso permitido em praça pública ou transportar munições de uso permitido.

2.3 – Porte/posse ilegal de munição de uso permitido – art. 16 da Lei 10.826/03

O art. 16 da Lei 10.826/03 não faz distinção entre porte ou posse de arma, munição ou acessório de USO RESTRITO. Vejamos:

art. 16 da Lei 10.826/03 - crime de posse ou porte de arma, munição ou acessório de uso restrito

“Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

I – suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato;

II – modificar as características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma de fogo de uso proibido ou restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer modo induzir a erro autoridade policial, perito ou juiz;

III – possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;

IV – portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado;

V – vender, entregar ou fornecer, ainda que gratuitamente, arma de fogo, acessório, munição ou explosivo a criança ou adolescente; e

VI – produzir, recarregar ou reciclar, sem autorização legal, ou adulterar, de qualquer forma, munição ou explosivo.

§ 2º Se as condutas descritas no caput e no § 1º deste artigo envolverem arma de fogo de uso proibido, a pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)”

E mais, o art. 16 do Estatuto do Desarmamento traz um rol de outras condutas que receberão o mesmo tratamento, isto é, condutas equiparadas.

Sobre as condutas equiparadas, há precedente do STJ que sustenta que tais figuras também são crimes hediondos4.

Vejamos:

“A qualificação de hediondez aos crimes do art. 16 da Lei n. 10.826/2003, inserida pela Lei n. 13.497/2017, abrange os tipos do caput e as condutas equiparadas previstas no seu parágrafo único.” (STJ. HC 526.916-SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 01/10/2019, DJe 08/10/2019. Informativo 657).

Ainda em relação ao tema ora discutido, no que tange o inciso I, do § 1º, do 16 da Lei 10.826/03, o mesmo STJ entendeu que “suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato”, desde que de USO PERMITIDO, não pode ser ilícito equiparado a crime hediondo5.

Vejamos:

“O crime de posse ou porte de arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado não integra o rol dos crimes hediondos.” (STJ. HC 525.249-RS, Rel. Min. Laurita Vaz, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020. Informativo 684).

3 – É aplicável o princípio da insignificância ao crime de porte/posse de munição?

A admissão da insignificância no caso concreto atrai induz o reconhecimento da atipicidade material, pois mesmo que se trate de conduta formalmente típica, o resultado concreto é irrelevante a ponto de não abalar o bem jurídico.

Nesse caso, é de se imaginar que nos crimes de perigo abstrato, em que há presunção de ofensividade, não se aplica a princípio da insignificância. Sim, isso mesmo.

Assim, como regra, não se aplica o princípio da insignificância aos crimes definidos nos arts. 12, 14 e 16 do Estatuto do Desarmamento. Esta é a regra.

Porém, o caso concreto pode indicar que, em determinadas circunstâncias específicas, poderá ser possível reconhecer a insignificância das condutas dos arts. 12, 14 e 16 da Lei 10.826/03.

3.1 – aplicação do princípio da insignificância quando for o caso de ínfima quantidade de munição:

Como vimos, em situações bem específicas é possível o reconhecimento da insignificância quando for hipótese de apreensão de ínfima quantidade de munição.

Destaque-se, que estamos falando de “munição” e não de “arma de fogo”.

A apreensão de arma de fogo, mesmo que apenas uma, é suficiente para atrair quaisquer das figuras típicas abordadas acima (conforme o caso).

Anteriormente, era praticamente impossível uma absolvição com base na atipicidade da conduta pela ínfima quantidade de munição apreendida com base na insignificância.

Contudo, no ano de 2016, o STF entendeu que a utilização de uma munição de uso restrito como pingente configuraria fato atípico pela ausência de lesividade concreta, afastando, assim, a presunção de lesividade, conforme decisão veiculada no informativo de nº 826 do STF6.

Vejamos:

“É atípica a conduta daquele que porta, na forma de pingente, munição desacompanhada de arma”. (STF. HC 133984/MG, rel. Min. Cármen Lúcia, 17.5.2016. Informativo 826).

Desse modo, com base na decisão do STF, os tribunais passaram a entender pela viabilidade de aplicação do princípio da insignificância, acarretando na atipicidade material da conduta, na ocorrência de apreensão de pequena quantidade de munição.

Em síntese: é possível a aplicação do princípio da insignificância aos crimes dos arts. 12, 14 e 16 da Lei 10.826/03, afastando a presunção de lesividade e acarretando na atipicidade material da conduta.

Porém, nem sempre. Vejamos.

3.2 – Aplicação da insignificância dependerá de outras circunstâncias

Apesar de ser possível a incidência do princípio da insignificância nos crimes descritos nos arts. 12, 14 e 16 do Estatuto do Desarmamento, quando se tratar de ínfima quantia de munição apreendida, é necessário observar o contexto.

O próprio STF entende que:

“Agravo regimental no recurso ordinário em habeas corpus. 2. Posse ilegal de uma única munição. Impossibilidade de reconhecimento da atipicidade no caso concreto. Apreensão de uma munição juntamente com 2 (duas) porções de maconha, com massa bruta total de 595g (quinhentos e noventa e cinco gramas), uma porção de skank, outra de haxixe e mais 9 (nove) porções de maconha, além de 1 (uma) munição calibre .32 e apetrechos típicos do comércio ilícito de drogas, como rolos de plástico para embalagem e balança de precisão. Presentes circunstâncias que afastam a insignificância da conduta. 3. Agravo improvido.” (STF. RHC 192847 AgR, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 15/12/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-295 DIVULG 17-12-2020 PUBLIC 18-12-2020).

Seguindo o entendimento do STF, em recente decisão veiculada no informativo de nº 7107, o STJ entendeu que:

“A apreensão de ínfima quantidade de munição desacompanhada da arma de fogo não implica, por si só, a atipicidade da conduta.” (STJ. EREsp 1.856.980-SC, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 22/09/2021. Informativo 710).

Basicamente, em confluência com o entendimento do STF, não basta a ínfima quantidade de munição apreendida, é necessário observar o contexto.

Exemplo: indivíduo que utiliza munição, de calibre permitido ou não, como mero adorno ou guarda como “mimo” em sua residência, certamente fará jus a aplicação do princípio da insignificância, se ausente circunstâncias desabonadoras.

Exemplo 2: agente que de posse de 01 munição de calibre permitido, faz uso desta, de forma reiterada, para ameaçar a companheira (incorrendo em violência doméstica), certamente não fará jus ao reconhecimento da atipicidade material com base na insignificância.

Você pode se interessar em ler também: Contudo. Todavia. Entretanto.

Crime de violência psicológica – art. 147-B, do CP

Modelo de Habeas Corpus – art. 5º, inciso LXVIII, da CF/88

Audiência de custódia – art. 310 do CPP

Crime de lesão corporal – art. 129 do CP

Fontes:

1 STJ. AgRg no REsp 1960029/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 05/10/2021, DJe 13/10/2021.

2 STJ. AgRg no HC 692.217/ES, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 28/09/2021, DJe 04/10/2021.

3 STJ. AgRg no HC 619.750/RS, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Rel. p/ Acórdão Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 22/09/2021, DJe 01/10/2021.

4 STJ. HC 526.916-SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 01/10/2019, DJe 08/10/2019. Informativo 657.

5 STJ. HC 525.249-RS, Rel. Min. Laurita Vaz, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020. Informativo 684.

6 STF. HC 133984/MG, rel. Min. Cármen Lúcia, 17.5.2016. Informativo 826.

7 STJ. EREsp 1.856.980-SC, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 22/09/2021. Informativo 710.

Informativo do STF de nº 826

Informativos do STJ: 657, 684 e 710.

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